Ao final da exibição, fica claro que Jogos Vorazes: Em Chamas (Hunger Games: Catching Fire, 2013) é um representante incomum de seu gênero, e a explicação começa desde a gênese literária da série criada por Suzanne Collins. Ao abordar questões sociais à frente da temática sentimental infanto-juvenil, os livros se distanciaram do feudo pop governado por Crepúsculo e geraram uma interessante adaptação cinematográfica, que apresentou os males do totalitarismo em forma de blockbuster. Seria fácil repetir a receita, mas embora a competição brutal que dá nome à série retorne novamente, Em Chamas deixa a violência em segundo plano para se concentrar na expansão do universo estabelecido pelo seu antecessor. Sob a direção de Francis Lawrence (Eu Sou A Lenda, 2007), o segundo filme ultrapassa a função de mero fio condutor e cultiva uma personalidade própria, baseada na rara mistura homogênea de entretenimento e relevância social.

   A trama começa por uma cena cuja estética lembra O Inverno da Alma (Winter’s Bone, 2009), filme que projetou a talentosa Jennifer Lawrence para o mundo. E ali está ela na pele de Katniss Everdeen, caçando solitária após sobreviver aos Jogos Vorazes do primeiro filme. A garota tenta levar uma vida normal com a ajuda de seu amor secreto Gale Hawthorne (Liam Hemsworth), mas o trauma da arena ainda lhe atormenta com a lembrança da violência e dos mortos. Só que a rotina de uma vencedora é feita de compromissos com o espetáculo, e por isso Katniss é obrigada pelo Presidente Snow (Donald Sutherland) a encenar um relacionamento com seu aliado e amigo Peeta Mellark (Josh Hutcherson). A dupla (ou seria casal?) participará de um tour pelos Distritos na tentativa de amenizar as rebeliões contra a Capital, mas infelizmente para Snow, Katniss é vista pelo povo como símbolo da luta contra a opressão. Portanto o Presidente decide destruir a imagem da garota com a ajuda de Plutarch Heavensbee (Philip Seymour Hoffman), que desenvolve o Massacre Quaternário onde Katniss e Peeta serão obrigados a lutar mais uma vez, agora contra antigos vencedores dos Jogos, o que diminui suas chances de sobrevivência drasticamente.

Porém antes de entrarmos na arena com Katniss e Peeta, o diretor Francis Lawrence nos leva com os protagonistas pelo Tour da Vitória, onde são apresentados os outros Distritos e todas as mazelas que os afligem. Se no primeiro filme a representação da miséria era diluída pela destacada extravagância da Capital, aqui os pobres não possuem espaço nem mesmo para respirar, com os soldados Pacificadores apertando a coleira da população. A presença das forças de segurança é muito mais ostensiva e agressiva, reforçando o caráter distópico-autoritário desta sociedade. Fica claro o esforço de Francis Lawrence para se manter fiel ao livro, aproveitando o orçamento maior da sequência para investir na escala da repressão, o que por sua vez acentua o contraste entre as classes. Embora estejam presentes os elementos essenciais de um produto direcionado ao público jovem, à exemplo da protagonista feminina dividida entre dois pretendentes, estes dão passagem à reflexões sociais que aprofundam o subtexto do roteiro escrito por
Michael Arndt (Oblivion) e Simon Beaufoy (127 Horas), diferenciando Em Chamas de outros filmes direcionados ao mesmo nicho.

De nada adiantariam argumentos interessantes caso a performance artística não estivesse à altura, mas felizmente não é o que acontece. Com um elenco estelar em mãos, Francis Lawrence aproveita o material humano melhor do que seu antecessor Gary Ross, expandindo alguns papéis e justificando a existência de outros. O maior exemplo é Gale, personagem que pouco fez no primeiro longa e aqui finalmente ganha a oportunidade de mostrar por que merece o amor de Katniss. Já Philip Seymour-Hoffman injeta frieza ambígua no novo vilão, e Woody Harrelson segue vivendo Haymitch como um bêbado simpático que traz uma dose de maturidade e uma ponta de cansaço no olhar, enquanto Elizabeth Banks consegue a proeza de humanizar a extravagante Effie Trinket, representante outrora orgulhosa dos Jogos que agora torce e sofre por seus Tributos. Todos se conectam com Katniss à um nível sentimental verossímil, ainda que Jennifer Lawrence empregue seu talento principalmente na construção de uma personagem forte porém vulnerável, símbolo de um feminismo brando. Ela é o centro de um triângulo amoroso complexo que não distrai os protagonistas excessivamente, tendo em vista que sua preocupação primordial é sempre a sobrevivência e o bem-estar dos entes queridos.

Eis o trunfo de Em Chamas: prioridades corretas. Apesar de seus conflitos sentimentais, a ameaça imediata existe e é encarada pelos personagens na real medida de suas proporções, facilitando a empatia do público. Após traçar um paralelo contundente da turbulência em Panem com as manifestações do mundo real, o cineasta Francis Lawrence põe o eixo da narrativa nos Jogos propriamente ditos, exercitando o lado blockbuster de seu filme. Desta vez o combate envolve personagens mais lapidados, como Finnick Odair (Sam Claflin) e Johanna Mason (Jena Malone), mas ainda falta a violência realista de Battle Royale, mangá japonês que inspirou os livros diretamente. Embora o diretor seja obrigado pelo estúdio a trabalhar nos limites da censura leve, sua obra é um retrato pertinente de um contexto global opressor que não se restringe à ficção.

Em 146 minutos acelerados que denunciam a origem do diretor nos videoclipes, Jogos Vorazes: Em Chamas apresenta, em linhas gerais, a pirâmide estamental à um público jovem que não costuma se interessar por economia e/ou política, e ainda mostra como um simples gesto pode fazer a diferença. Involuntariamente ou não, o filme subverte o entretenimento de massa ao disseminar ideias nocivas ao sistema, tal qual o Massacre Quaternário de Panem. Fica a promessa de uma conclusão ainda melhor, e a pergunta: até onde irá essa metáfora?


 E a minha nota pra esse filme são 3 pratos e meio!

by fabio 13:53 | in

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